6 de jul. de 2015 | By: @igorpensar

O Problema da Nudez Moral

Ao aprofundar as reflexões sobre a cultura afetiva, e a partir de muito do que se tem ouvido em minha comunidade de fé, chego a conclusão de que a couraça ou o revestimento moral que deveríamos ter está ausente ou comprometido.  O que significa enfim que vivemos o tempo presente em "carne viva".  Daí nossa hipersensibilidade, reatividade, fobia social e intolerância.

Explico melhor: por revestimento moral entendo a vida pessoal equipada por uma sabedoria que se constitui da internalização de valores morais e virtudes que orientam nossa resposta em relação ao mundo e a vida com as pessoas.  O sábio é aquele que tem suas pulsões contidas e/ou educadas para agir e interagir com o mundo e com as pessoas de forma ética e responsável.

Pessoas despidas de revestimento moral tendem a ser como sujeitos em “carne viva”.  Sabe quando alguém encosta em uma queimadura?  Não resta outra coisa ao queimado senão uma reação desproporcional, desmedida e até violenta para proteger-se e livrar-se do desconforto e da dor.  A cultura afetiva vem despindo e expondo à nudez gerações inteiras que não possuem dispositivos morais suficientes para lidar com e tolerar o convívio social.  A desorientação provocada é tão grande, que resta ao estado moderno, por via jurídica, criar dispositivos impessoais para compensar a pobreza ou falta de revestimento moral nos indivíduos.

Importante destacar aquilo que o filósofo alemão Immanuel Kant chamava de “sociedade civil ética” segundo ele é “um estado em que [os homens] se encontram reunidos sob leis não opressivas, ou seja, simples leis de virtude”¹.  A comunidade ética se distinguiria do “estado jurídico”, pois este se sustenta pelo poder coercitivo e pela força da lei institucionalizada, enquanto aquele funda-se em valores morais internalizados, ou seja, virtudes.   Ainda, Kant chama a atenção para o fato de que o estado jurídico, o estado como conhecemos, deveria promover a comunidade ética para seu próprio bem.  A truculência, o abuso e onerosidade estatais devem-se justamente a indivíduos, e consequentemente, uma sociedade moralmente empobrecidos.

Curiosamente os que adotam o campo afetivo como critério de justiça acabam por promover uma cultura amoral de alta reatividade.  Querem superar a violência removendo precisamente aquilo que tem o poder de conter a violência. Ao invés de promover instituições que formam armaduras morais, eles colocam no mundo sujeitos moralmente empobrecidos e criam leis e jurisdições para que ninguém se esbarre, criando a atmosfera perfeita para o individualismo, o caos e tensões interpessoais.  E, claro, ampliando o poder do estado e sua ingerência em esferas que não são de sua alçada.

Nossa intolerância a dor, ao sofrimento e em relação ao convívio social se devem em muito a este estado de nudez moral.  Criamos uma distância ou uma margem de segurança em relação ao outro por medo do desconforto.  Só nos resta o isolamento e a fuga de qualquer tipo de vínculo comunitário e convívio social.  Ao invés de lidar com nossa nudez, elaboramos vestes improvisadas de “folhas de figueira” e nos isolamos de Deus e das pessoas.  O resultado só poderia ser Caim matando Abel, ou seja, a violência.  Quando Sartre diz que "o inferno são os outros", o faz a partir de seu lugar de homem já queimado pelo fogo eterno.  Sua carne está sendo devorada, não resta outra coisa a ele senão a intolerância.

Mas quem promove capital moral?  Quais são as instituições que manufaturam roupas moralmente apropriadas para imergimos na vida social sem medo do outro?  Sem dúvida instituições providenciais e consagradas pelo tempo como o casamento, a família e a comunidade de fé.   Porém o que o cristianismo propõem é algo além e mais consistente.  A raiz da nudez do ser humano encontra-se no fato de que ele se encontra curvado sobre si mesmo.  Ao perder a visão do sagrado, a noção de transcendência, ele se descobriu nu (Gênesis novamente).  Ou seja, despido e privado de um revestimento de sabedoria que pudesse equipá-lo para viver sem medo no mundo de Deus.  Não é em vão que a “árvore da vida” é associada com a sabedoria na literatura sapiencial hebraica.

Agora fica claro que quando o apóstolo Paulo usa expressões como "revestir-se do novo homem" ou "revestir-se de Cristo" ele se refere a necessidade da apropriação de uma nova existência.  Sem esta couraça da fé, a roupa do Cristo ressuscitado, ainda que se tenha vestimentas morais, socialmente necessárias, elas ainda são insuficientes para lidar com o ardor da permanente presença de Deus no mundo.  Neste caso, devemos recorrer à noção apostólica de que Cristo é a interface entre o cristão, as pessoas e o mundo, nosso amor em relação ao próximo não é sentimentalista, é mediado por Cristo.  Nas palavras do pastor e mártir Dietrich Bonhoeffer:
“Entre meu próximo e eu está Cristo.  Por isto não é me é permitido desejar uma comunhão direta com meu próximo.  Unicamente Cristo pode ajudá-lo, como unicamente Cristo pode me ajudar.   Isto significa que devo renuncia as minhas intenções apaixonadas de manipular, forçar ou dominar a meu próximo.”²
Enfim, Cristo é a resposta mais adequada para o empobrecimento moral generalizado, e por incrível que pareça, nele se encontram os recursos para uma vida livre da ingerência e do controle estatal e do empobrecimento sentimentalista da cultura afetiva.  Qualquer ataque contra ou tentativas de redefinição do casamento, da família ou da igreja, devem ser encaradas como uma violação das principais instituições responsáveis pela proteção da liberdade humana.  São elas as responsáveis pela produção e revestimento da vida moral.  Promoção de capital moral desonera e protege a sociedade civil do abuso estatal, e por outro lado, equipa indivíduos para lidar com a vida em sociedade superando a pulsão por violência.
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¹ A Religião nos Limites da Simples Razão, Parte III, Seção I.
² Livro “Vida em Comunhão”.

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