"Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas." (Dt 6:6-9)
O povo de Deus se alimenta de narrativas de fé. Eventos localizados na história, de fato, mas que também a transcendem. Somos a família da memória. Na liturgia cristã, as Escrituras são abertas e a história da salvação nos é contada. Ouvimos ali, a partir deste livro antigo, histórias sobre personagens antigos, de um povo pequeno, mas peculiar. Nossos heróis são reis e guerreiros, mas também, pastores, profetas que cuidavam de gados, pescadores e homens banidos. A Bíblia nos fala de sábios, legisladores, regentes, prostitutas, viúvas, pobres, donas de casa, soberbos e humildes. Os personagens bíblicos tornam-se arquétipos psicológicos, traços de personalidade perfeitamente compatíveis com nossa frágil condição humana. Por isso, somos o povo que conta e reconta a existência, deles e nossa.
De fato, quando ouvimos tais histórias ou narrativas da salvação, não temos a dimensão total dos eventos, afinal é um livro e não um registro cinematográfico. Um livro que precisa ser narrado e que afeta diretamente nossa imaginação. Há um elemento retórico, poético e imaginativo nas Escrituras. De acordo com a pedagogia bíblica: "a doçura no falar aumenta a aprendizagem"¹.
Tenho percebido que boa teologia se faz com boa lógica, mas também com bela arquitetura retórica. Quando lemos Agostinho e mesmo Calvino percebemos que beleza nunca esteve ausente do bom discurso teológico. Assim, teologia se conecta com beleza e imaginação, e novamente, nos vemos imaginando o mundo a partir de narrativas e homilias que nos afetam a partir da indispensável iluminação do Espírito Santo.
Não é esta exposição permanente das Escrituras que insiste o apóstolo ao jovem presbítero? Sim, Paulo encoraja Timóteo a perseverar na leitura pública das Escrituras². Prática eternizada em toda estrutura de culto cristão que faça jus ao nome. A pregação bíblica, herança da liturgia judaica, antiga prática pedagógica que imprime no Povo de Deus, a comunidade eleita, sua identidade, seu lugar no tempo e no espaço. Somos herdeiros de uma comunidade esperançosa, que traz à memória os atos salvadores de Deus.
No encontro de Deus com Moisés, o legislador de Israel atreveu-se a perguntar-lhe o nome. Desta forma, obteve como resposta: "Eu Sou o que Sou [...] o Deus de Abraão, Isaque e Jacó" (Ex 3). Em outras palavras, um Deus que é narrado, contado e recontado na trajetória de seus escolhidos. Ele não se revela em ídolos estáticos, mas em homens animados por sua imagem e semelhança, transformados de glória em glória, pelo Espírito Santo³.
O ápice da revelação narrada e contada sobre Deus, encarna-se (há um tom dramático aqui) em Jesus Cristo. Lembra o que foi dito pelo apóstolo? "Ninguém jamais viu a Deus, por isto, o Filho Unigênito que está no seio do Pai o revelou" (Jo 1:14). Pois é, me maravilhei quando descobri que a palavra traduzida por "revelou" na versão João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada, tem um sentido retórico-narrativo. A palavra eksêgeomai [εξηγεομαι] tem o sentido de "narrar", "contar" ou "relatar", de fato, foi isso que Cristo fez. O Unigênito veio para declamar de forma mais expressiva, por meio de sua encarnação, quem é o Pai. Esta é a narrativa, o kerygma, a mensagem que nos foi anunciada pela exposição pública do Filho de Deus. Uma pedagogia radical, para uma obra salvadora igualmente radical.
A partir do Verbo Encarnado, Jesus Cristo, o púlpito cristão tornou-se o local do anúncio, a velha pregação ainda tem sido a grande plataforma de transformação de vidas e comunidades. Por esta razão ela é tão central para o cristianismo. Pois é a partir da Palavra que mentes e corações são iluminados pela graça evangélica, escamas caem e corações são elevados ao Deus que se revelou em Jesus. Entretanto, o sucesso da pregação cristã, sua homilia, encontra-se na centralidade de sua mensagem: Jesus Cristo. Sem Cristo, o anúncio torna-se retórica vazia, comunica morte. Entretanto, a partir do Verbo do interior do homem podem "fluir rios de águas vivas" (Jo 7:38), a aridez de um coração alienado pode ser inundado pelo Espírito Santo.
Assim, comunidade de Cristo, que possamos insistir em contar a história de nossa salvação, que nossa imaginação seja afetada pelo anúncio, que sejamos salvos por este Cristo, que se faz presente na narrativa evangélica, como foi dito pelo Apóstolo Paulo:
"Depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa." (Ef 1:13).
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¹ Tradução livre de Pv 16:21 - לַחֲכַם־לֵב יִקָּרֵא נָבֹון וּמֶתֶק שְׂפָתַיִם יֹסִיף לֶֽקַח
² I Tm 4:13
³ II Co 3:18
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