29 de abr. de 2012 | By: @igorpensar

Sabedoria Encarnada


Por Igor Miguel
Eu, a Sabedoria, habito com a prudência e disponho de conhecimentos e de conselhos. [...] O SENHOR me possuía no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra. Antes de haver abismos, eu nasci, e antes ainda de haver fontes carregadas de águas. Antes que os montes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci. Ainda ele não tinha feito a terra, nem as amplidões, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando traçava o horizonte sobre a face do abismo; quando firmava as nuvens de cima; quando estabelecia as fontes do abismo; quando fixava ao mar o seu limite, para que as águas não traspassassem os seus limites; quando compunha os fundamentos da terra; 30 então, eu estava com ele e era seu arquiteto, dia após dia, eu era as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo; regozijando-me no seu mundo habitável e achando as minhas delícias com os filhos dos homens. (Pv 8:12, 22-31).

Provérbios capítulo 8 é um quadro poético onde a "Sabedoria" é personificada.  Apesar de sua origem divina e transcendência, ela se envolve com a criação e "folga" entre os filhos dos homens.  Este quadro didático tornou-se gradativamente um quadro cristológico, a ponto de a "sabedoria" חכמה/σοφια (chochmá/sofia) ser identificada com o λογος (logos).  Um sinal desta associação pode ser encontrada nos escritos judaicos do período helenista, como o seguinte trecho do livro de Eclesiásticos:
“Saí da boca do Altíssimo e como a neblina cobri a terra, armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens. [...] Junto de todos estes procurei onde pousar e em qual herança pudesse habitar.  Então o criador de todas as coisas deu-me uma ordem, aquele que me criou armou a minha tenda [skênên] e disse: 'Instala-te em Jacó, em Israel recebe a tua herança'” (Eclesiástico 24:3,4,8 e 9 - Septuaginta).
Eclesiástico reflete um tratamento profético dado à sabedoria, que agora "arma sua tenda" [skênen] em Jacó.  Daí, se percebe pouca distância para se chegar ao "se fez carne e habitou entre nós" de João 1.  A propósito, o "verbo ... habitou" em João é da mesma raiz de Eclesiástico "εσκηνωσεν (eskênosen)", literalmente, "estendeu a tenda entre nós".

Interessante, pois tal expectativa da sabedoria como mediadora da criação não era tão estranha ao universo judaico da época de Jesus, como encontra-se em escritos da época:
“Diz a Torá: 'eu fui a ferramenta artesanal do Santo, bendito seja'. Segundo a prática do mundo, quando um rei de carne e osso constrói um palácio, não o constrói exclusivamente com sua habilidade, se não valendo-se da destreza de um arquiteto. E o arquiteto no o constrói só com sua própria maestria ... mas, utiliza plantas e esquemas para saber como há de construir as câmaras, como disporá as portas. Da mesma forma, o Santo, bendito seja, consultou a Torá e criou o mundo, pois a Torá declara: NO PRINCÍPIO CRIO DEUS. O 'princípio' não é outra coisa se não 'a Torá'”. (Midrash Bereshit Rabá, 1).
Apesar da "sabedoria" חכמה em Provérbios de Salomão não ter relação direta com a Torá (lei/instrução), esta associação se desenvolveu, principalmente no período helenista, onde ela se associa com a σοφια (sofia).

Desta forma, alguns especialistas em Novo Testamento tratam o evangelho de João como um evangelho "sapiencial", em que a Sabedoria/Verbo (Jesus) assume a humanidade e é narrada sob esta perspectiva:
“Embora o quarto evangelho seja bem diferente do primeiro, ele tem em comum com Mateus a abordagem baseada na sabedoria, em relação a Jesus e seus ensinamentos.  Somente o quarto evangelista escolheu apresentar Jesus como a sabedoria encarnada, discursando na terra como a sabedoria personificada o faz em Provérbios 8 e 9 e em fontes como a Sabedoria de Salomão. O quarto evangelista não parece depender de nenhum dos evangelhos anteriores, embora esteja claro que ele conhece algumas das tradições usadas nos evangelhos. No entanto, ele segue uma linha independente” (Witherington III, 2005, p.85 – grifo nosso)
João enfatiza os ensinamentos de Jesus e sua identidade como Filho de Deus. Tudo indica que João percebia uma profunda relação entre "sabedoria" e "filiação divina", talvez, em dependência com Provérbios 8 quando diz:
Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra.  Antes de haver abismos, eu nasci, e antes ainda de haver fontes carregadas de águas.  Antes que os montes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci. (Pv 8:23-25 - grifo nosso)
Uma leitura mais sensível, se percebe uma conexão clara entre:
"Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começa da terra" (Pv 8:23)
"Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez." (Jo 1:1-3).
Outro aspecto importante é que no texto original de Pv 8:24 encontra-se a expressão "eu nasci", que em hebraico é חוללתי (cholalti), no entando, na versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta (LXX), encontra-se "γεννα με" (gena me), que é uma variante do verbo "gerar, nascer etc"*, a mesma expressão que ocorre no Salmo 2:7, que diz "Tu és meu Filho eu hoje te gerei".  Sabe-se que este salmo cristológico foi largamente utilizado pelos teólogos cristãos na defesa da "eterna geração" do Filho, e como texto base para fundamentar o que os autores do Novo Testamento queriam dizer com a expressão "unigênito" (único gerado) ou "Filho de Deus".  Logo, quando os primeiros cristãos faziam referência a Jesus como "Filho de Deus", o faziam a partir do sentido de que, Jesus apesar de sua distinção enquanto "Filho", ainda assim, era da mesma natureza (divindade) do Pai (daquele que o gerou).  Não havendo aí dois deuses, se não uma única natureza e divindade, entretanto com distinções "hipostáticas", ou seja, distinções de papéis ou relações pessoais na trindade.

C.S. Lewis, em sua genialidade didática, ilustra a situação:
Não usamos mais as palavras begetting e begotten no inglês moderno, mas todo o mundo ainda sabe o que elas significam. Gerar (to beget) é ser pai de alguém; criar (to create) é fazer, construir algo. A diferença é a seguinte: na geração, o que foi gerado é da mesma espécie que o gerador. Um homem gera bebês humanos, um castor gera castorzinhos e um pássaro gera ovos de onde sairão outros passarinhos. Mas, quando fazemos algo, esse algo é de uma espécie diferente. Um pássaro faz um ninho, um castor constrói uma represa, um homem faz um aparelho de rádio - ou talvez algo um pouco mais parecido consigo mesmo que um rádio: uma estátua, por exemplo. Se for um escultor habilidoso, sua estátua se parecerá muito com um homem. Mas é claro que não será um homem de verdade; terá somente a aparência. Não poderá pensar nem respirar. Não tem vida.  Esse é o primeiro ponto que devemos deixar claro. O que Deus gera é Deus, assim como o que o homem gera é homem. O que Deus cria não é Deus, assim como o que o homem faz não é homem. É por isso que os homens não são filhos de Deus no mesmo sentido em que Cristo o é. Podem se parecer com Deus em certos aspectos, mas não são coisas da mesma espécie. Os homens são mais semelhantes a estátuas ou quadros de Deus. (Cristianismo Puro e Simples).
Como visto, a doutrina cristã da filiação divina de Jesus, desenvolvida por João, foi corretamente interpretada pela teologia ocidental.  De fato, o Verbo de Deus foi gerado desde a eternidade, logo, ele não é criatura, mas geração de Deus.  Sendo geração, desfruta da mesma natureza.  Foi por meio dele, o Verbo/Sabedoria de Deus, que Ele fez o universo.   Esta revelação progressiva, foi fruto de um tratamento profético dado ao poema didático da "sabedoria" (chochmá - חכמה).  Uma "pedagogia" que virou "profecia", e desdobrou-se em toda rica cristologia desenvolvida por João a respeito do Verbo e Filho Unigênito de Deus. Finalmente, a palavra ordenadora que se fez carne em Jesus Cristo, encontrou suas "delícias entre os filhos de Adão"**.
É árvore de vida para os que a alcançam, e felizes são todos os que a retêm.  O SENHOR com sabedoria fundou a terra, com inteligência estabeleceu os céus. (Pv 3:18-19)
*Neste caso, no presente do indicativo ativo.
** Tradução literal de וְ֝שַׁעֲשֻׁעַ֗י אֶת־בְּנֵ֥י אָדָֽם (Pv 8:31).
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Referência Bibliográfica

WITHERINGTON III, B. História e Histórias do Novo Testamento. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2005.
LEWIS, C.S.  Cristianismo Puro e Simples.  São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.

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