O cristianismo, particularmente de tradição calvinista, é uma boa matriz filosófica na orientação de posicionamentos políticos que defendem a liberdade individual e comunitária, por um motivo básico: não admite que ninguém e nada se torne absoluto, exceto Deus. A soberania absoluta é uma exclusividade da divindade. Todas as esferas de poder que aí estão foram constituídas por Deus e são relativas a Ele e umas às outras. Sendo assim, a defesa calvinista do Deus bíblico como absoluto, e tudo mais relativo a Ele, possibilitaria filosoficamente uma perspectiva política realmente plural. Esta seria a diferença básica entre uma visão política cristã e ideologias que defendem um pluralismo fictício baseado na absolutização/divinização do Estado ou dos indivíduos. Nestes termos, teologia e política encontram-se, mais uma vez, na arena pública. Política nunca foi religiosamente neutra. E religião nunca foi politicamente neutra.
Falarás!
"Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas." (Dt 6:6-9)
O povo de Deus se alimenta de narrativas de fé. Eventos localizados na história, de fato, mas que também a transcendem. Somos a família da memória. Na liturgia cristã, as Escrituras são abertas e a história da salvação nos é contada. Ouvimos ali, a partir deste livro antigo, histórias sobre personagens antigos, de um povo pequeno, mas peculiar. Nossos heróis são reis e guerreiros, mas também, pastores, profetas que cuidavam de gados, pescadores e homens banidos. A Bíblia nos fala de sábios, legisladores, regentes, prostitutas, viúvas, pobres, donas de casa, soberbos e humildes. Os personagens bíblicos tornam-se arquétipos psicológicos, traços de personalidade perfeitamente compatíveis com nossa frágil condição humana. Por isso, somos o povo que conta e reconta a existência, deles e nossa.
De fato, quando ouvimos tais histórias ou narrativas da salvação, não temos a dimensão total dos eventos, afinal é um livro e não um registro cinematográfico. Um livro que precisa ser narrado e que afeta diretamente nossa imaginação. Há um elemento retórico, poético e imaginativo nas Escrituras. De acordo com a pedagogia bíblica: "a doçura no falar aumenta a aprendizagem"¹.
Tenho percebido que boa teologia se faz com boa lógica, mas também com bela arquitetura retórica. Quando lemos Agostinho e mesmo Calvino percebemos que beleza nunca esteve ausente do bom discurso teológico. Assim, teologia se conecta com beleza e imaginação, e novamente, nos vemos imaginando o mundo a partir de narrativas e homilias que nos afetam a partir da indispensável iluminação do Espírito Santo.
Não é esta exposição permanente das Escrituras que insiste o apóstolo ao jovem presbítero? Sim, Paulo encoraja Timóteo a perseverar na leitura pública das Escrituras². Prática eternizada em toda estrutura de culto cristão que faça jus ao nome. A pregação bíblica, herança da liturgia judaica, antiga prática pedagógica que imprime no Povo de Deus, a comunidade eleita, sua identidade, seu lugar no tempo e no espaço. Somos herdeiros de uma comunidade esperançosa, que traz à memória os atos salvadores de Deus.
No encontro de Deus com Moisés, o legislador de Israel atreveu-se a perguntar-lhe o nome. Desta forma, obteve como resposta: "Eu Sou o que Sou [...] o Deus de Abraão, Isaque e Jacó" (Ex 3). Em outras palavras, um Deus que é narrado, contado e recontado na trajetória de seus escolhidos. Ele não se revela em ídolos estáticos, mas em homens animados por sua imagem e semelhança, transformados de glória em glória, pelo Espírito Santo³.
O ápice da revelação narrada e contada sobre Deus, encarna-se (há um tom dramático aqui) em Jesus Cristo. Lembra o que foi dito pelo apóstolo? "Ninguém jamais viu a Deus, por isto, o Filho Unigênito que está no seio do Pai o revelou" (Jo 1:14). Pois é, me maravilhei quando descobri que a palavra traduzida por "revelou" na versão João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada, tem um sentido retórico-narrativo. A palavra eksêgeomai [εξηγεομαι] tem o sentido de "narrar", "contar" ou "relatar", de fato, foi isso que Cristo fez. O Unigênito veio para declamar de forma mais expressiva, por meio de sua encarnação, quem é o Pai. Esta é a narrativa, o kerygma, a mensagem que nos foi anunciada pela exposição pública do Filho de Deus. Uma pedagogia radical, para uma obra salvadora igualmente radical.
A partir do Verbo Encarnado, Jesus Cristo, o púlpito cristão tornou-se o local do anúncio, a velha pregação ainda tem sido a grande plataforma de transformação de vidas e comunidades. Por esta razão ela é tão central para o cristianismo. Pois é a partir da Palavra que mentes e corações são iluminados pela graça evangélica, escamas caem e corações são elevados ao Deus que se revelou em Jesus. Entretanto, o sucesso da pregação cristã, sua homilia, encontra-se na centralidade de sua mensagem: Jesus Cristo. Sem Cristo, o anúncio torna-se retórica vazia, comunica morte. Entretanto, a partir do Verbo do interior do homem podem "fluir rios de águas vivas" (Jo 7:38), a aridez de um coração alienado pode ser inundado pelo Espírito Santo.
Assim, comunidade de Cristo, que possamos insistir em contar a história de nossa salvação, que nossa imaginação seja afetada pelo anúncio, que sejamos salvos por este Cristo, que se faz presente na narrativa evangélica, como foi dito pelo Apóstolo Paulo:
"Depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa." (Ef 1:13).
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¹ Tradução livre de Pv 16:21 - לַחֲכַם־לֵב יִקָּרֵא נָבֹון וּמֶתֶק שְׂפָתַיִם יֹסִיף לֶֽקַח
² I Tm 4:13
³ II Co 3:18
O Calvinista: um poema.
É desse jeito que queremos ser... "The Calvinist" (O Calvinista) um poema de John Piper.
O calvinista
Por John Piper (Tradução: Roberto Vargas Jr)
Veja-o de joelhos,
Ouça seus constantes apelos:
Coração de cada objetivo:
"Santificado seja o teu nome."
Veja-o na Palavra,
Desamparado, calmo, tranquilo,
Amontoando brasas
Com cuidado até o fogo.
Veja-o com seus livros:
Árvore ao lado dos córregos,
Bebendo na raiz
Até o ramo dar frutos.
Veja-o com a sua caneta:
Linha escrita, e então,
Um pensamento melhor,
Aprofundado a partir da Palavra.
Veja-o na praça,
Preservado do laço sutil:
Guardião implacável
Da fragrância da verdade.
Veja-o na rua,
Em busca de súplica,
Manso e a entesourar:
"Você conhece o meu Rei?"
Veja-o em controvérsia,
Firme e decidido,
Impulsionado pela fama
Do nome de seu Pai.
Veja-o em seu negócio.
Concluído. O plano está feito.
Os homens terão suas habilidades,
Se o Pai o desejar.
Veja-o em sua refeição,
Orando agora a sentir-se
Grato e, seja agraciado,
Deus em cada sabor.
Veja-o com o seu filho:
Ele já sorriu
Tal sorriso antes,
Brincando no chão?
Veja-o com sua esposa,
Parábola para a vida:
Nesta cena sagrada
Ela é a rainha do céu.
Veja-o em devaneio. Ele geme.
"Um é verdade", ele reconhece.
"O que me resta?
Falibilidade".
Veja-o em lamento
"Devo agora me arrepender?"
"Sim. E então proclamar:
Tudo é para a minha fama."
Veja-o adorando.
Assista ao pecador cantar,
Poupado do fogo consumidor
Apenas pelo sangue .
Veja-o na praia:
"De onde provém esse oceano?"
"Do seu Deus acima,
Dedal de amor."
Veja-o agora dormindo.
Observa a colheita dos indefesos,
Mas nenhum crédito a reivindicar,
Assim como quando acordado.
Veja-o à beira da morte.
Ouça a sua respiração,
Através da dor desvanecendo:
Sussurro final: "Ganho!"
Pedagogia e Olavo de Carvalho
Por Igor Miguel
“A partir dos anos 1980, a elite esquerdista tomou posse da educação pública, aí introduzindo o sistema de alfabetização “socioconstrutivista”, concebido por pedagogos esquerdistas como Emilia Ferrero, Lev Vigotsky e Paulo Freire para implantar na mente infantil as estruturas cognitivas aptas a preparar o desenvolvimento mais ou menos espontâneo de uma cosmovisão socialista, praticamente sem necessidade de “doutrinação” explícita.”
Não é a primeira vez que encontro afirmações dessa natureza nos escritos e ditos de Olavo de Carvalho, e já adianto, já encontrei coisas muito válidas em seus dizeres. Porém, como alguém certa vez disse a respeito de Freud: como filósofo ele foi um excelente psiquiatra. De fato, Olavo falha muitas vezes em questões de natureza educacional, e este é o ponto que tenho que compartilhar, pois Olavo tem se tornado referência para muitos educadores que se alinham com uma tradição mais conservadora como forma de reação a uma pedagogia mais à esquerda.
O referido trecho foi publicado no Diário do Comercio em 30 de outubro de 2012, e encontra-se em um dos capítulos do recente livro do Olavo intitulado: “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”. Há alguns problemas em termos de teoria educacional no excerto. Pra começar, misturou-se teoria psicológica do desenvolvimento com método (que ele chamou de sistema) de alfabetização. De fato, há um método de alfabetização, e não um sistema, sob influência do estruturalismo piagetino que é denominado de método construtivista, que tem sido associado corretamente com a educadora argentina Emília Ferrero. Paulo Freire, por sua vez, não tem qualquer relação, em termos teóricos, nem com Vygotsky e tão pouco com Piaget, ele se relaciona muito mais com movimentos libertários na pedagogia e na filosofia, do que com teorias da psicologia do desenvolvimento como a epistemologia genética de Piaget ou a teoria sócio-cultural ou sócio-interacionista de Vygotsky¹. Ainda, Olavo falha ao afirmar um sistema de alfabetização “concebido” por Vygotsky, Emilia Ferrero e Paulo Freire.
Então, vamos lá: Vygotsky nunca “concebeu” um método de alfabetização, Emilia é proponente de um método, o construtivista; e tem-se falado de um método “Paulo Freire” de alfabetização, que é em algum sentido, o método silábico, porém ideologizado. Mas, se existe um método Paulo Freire, ele tem pouca ou nenhuma relação com o estruturalismo de Piaget ou a abordagem sócio-cultural de Vygotsky.
Não tenho dúvida de intenções na arena educacional na tentativa de uma hegemonia teórica, principalmente oriunda daqueles mais à esquerda, e isto tem anos. Por outro lado, de fato, a teoria vygotskiana e a piagetina, lembro-vos, teorias do desenvolvimento cognitivo, não teorias pedagógicas necessariamente, são elucidativas em diversos aspectos para explicar o fenômeno da aprendizagem.
O problema do texto é que ele é um tanto sofismático no argumento. Não entendi a conexão entre “estruturas cognitivas aptas” com “doutrinação”. Repito, acho que há doutrinação sim, mas em termos teóricos, não há qualquer argumento plausível que sustente a tese de que as abordagens teóricas, tanto de Vygotsky como de Piaget, favoreçam uma abertura “cognitiva” para a doutrinação marxista. Se ao menos isto fosse dito a respeito de Paulo Freire, mas não foi o caso. Houve aí uma mistura de teóricos, uma falta de distinção entre método, teoria e filosofia educacionais. Não defendendo uma neutralidade ideológica nas perspectivas desenvolvimentistas aí apresentadas, ao contrário, tenho críticas e reservas tanto a Piaget como a Vygotsky. Mas, o salto “quântico” que associa uma teoria da psicologia e intenções doutrinárias nos termos que acontecem nas escolas no Brasil, alegando um “sistema” baseado diretamente nas teorias mencionadas, em particular Vygotsky e Piaget, seria um erro crasso e grosseiro.
Ironicamente, há pouco vi um vídeo em que Olavo de Carvalho criticava a filosofia paulofreiriana², e defendia, em contrapartida, a “pedagogia” do cientista israelense Reuven Feuerstein. Fiquei feliz dele ter feito tal menção, tenho defendido a relevância da Experiência da Aprendizagem Mediada (EAM) de Feuerstein há algum tempo, eu mesmo estive com ele pessoalmente há alguns anos em Jerusalém. Porém, ironicamente, o próprio Feuerstein é explicitamente influenciado por Vygotsky e Piaget. O próprio conceito de mediação é vygotskiano em certa medida, e a ideia de modificabilidade estrutural em sua teoria é oriunda do estruturalismo piagetiano. Então veja bem, Olavo de Carvalho encontrou alguma plausibilidade na teoria de Reuven Feuerstein, mas ignorou, em grande medida, como o cerne de sua teoria está radicado tanto no estruturalismo de Piaget, como na abordagem sócio-cultural de Vygotsky. Para compreender a relação entre estes dois teóricos e Reuven Feuerstein, vale a pena dar uma lida no livro de Alex Kozulin: “Psychological Tools: social cultural approach in education.”
Enfim, o que temo nisto tudo é que nesta gana de combater a imposição hegemônica do materialismo histórico dialético nas escolas, tanto em termos teóricos como metodológicos, Olavo de Carvalho, e muitos educadores conservadores, caiam em argumentos falaciosos desqualificando uma crítica apropriada ao esforço doutrinário em questão. Repito, não se pode colocar todos os teóricos em uma única sacola, e simplesmente repudiá-los por serem soviéticos ou por terem sido cooptados por uma ala proselitista de esquerda. O mesmo vale para cristãos que simplesmente ignoram determinados saberes teóricos produzidos por cientistas da educação ou da psicologia, por serem eles meramente não-cristãos. Neste caso, recorro ao reformador francês, João Calvino, que assevera: “Se reputarmos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade, a própria verdade, onde quer que ela apareça, não a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus.” (As Institutas da Religião Cristã, Livro II, Capítulo 2).
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¹Sem mencionar uma influência relevante que considero não-desprezível do filósofo existencialista judeu Martin Buber. Que é precisamente o que ainda me faz ler Paulo Freire, não obstante, a maioria dos pedagogos não fazer qualquer menção a respeito desta relação.
² Lembrando que Paulo Freire não desenvolveu nenhuma teoria psicológica ou do desenvolvimento, mas uma filosofia ou visão política educacional.
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